Ser ou Não Ser
Vivemos como se fôssemos o centro do universo. Nosso ego é algo que nos faz maus, porque somos egocêntricos e egoístas, o que nos faz colocar os outros como uma coisa secundária. E quanto mais distância econômica, cultural e social, mais indiferentes ou avessos nos tornamos aos que nos são diferentes. Os que professam outras crenças, e ideologias, os que possuem outra opção sexual ou identidade de gênero, os que falam outras línguas ou nasceram com outra cor de pele, enfim, tudo e qualquer coisa nos afasta do outro, nos impedindo de sermos altruístas, desapegados e amorosos. O nosso ego dificulta em nós o sermos humildes, reverentes e gratos. E quando somos obrigados a prestar culto a algo, reconhecendo alguém maior que nós, tendemos a não saber fazer prostrações ou dobrar os joelhos.
É claro que não nos cabe a submissão do escravo, afinal, amor próprio e uma boa autoestima podem não coexistirem com o egoísmo. Assim, vergar o ego supõe sabedoria para chegar ao reconhecimento sem submissão, à humildade sem fraqueza, e à gratidão por pura consciência da verdade.
Mas se existimos nos supondo e sentindo o centro, isto não nos impede que a periferia nos afete. Afinal, tudo o que acontece pode nos afetar sem que logremos qualquer controle dos eventos. Mas podemos ao menos controlar nossas crenças e reações, o que já nos permite um destino auto escolhido.
Costumamos viver como se soubéssemos quem somos, mas a simples pergunta – quem sou eu? – remete a uma parada súbita. Como disse o sábio Ramana Maharshi, a pergunta “quem sou eu?” estanca o processo pensante e esvazia a mente, porque o “eu” (ou ego) é a fonte de todos os pensamentos. O budismo dirá que o eu não existe, que ele é a raiz de todas as ilusões e apegos que nascem das identidades.
A identidade ao corpo se traduz na vontade de experienciar estímulos sensoriais, sendo invadido pelo mundo, a realizar desejos que nos tragam deleite e satisfação. O drama é que os desejos irrealizados sobrevivem ao corpo morto e, para se esgotarem, retornam a um novo corpo físico, alimentando o ciclo das reencarnações. Somos causa e consequência de outros, mas não somos o mesmo que eles, cada ego ilusório é somente igual a si mesmo. Apesar de que, durante a vida, em diferentes momentos, somos múltiplos, já que não há centro que coordene a profusão de sensações, emoções, sentimentos, pensamentos e ações, passíveis de acontecerem em alguns dos infinitos instantes e circunstâncias.
A identidade às coisas é explicitada como desejo, posse e apego. Pensamos ser o que temos, e pensamos ter o que é do mundo, e não nosso. Consumimos mil coisas que nos parecem necessárias, mas que, se não existissem, não afetariam nossa vida. Ostentamos luxo e riqueza, como se isto nos tornasse mais do que somos, nos tornasse imortais, como se viver como um rei nos colocasse num Olimpo dos deuses. Doce ilusão pensar que uma gorda conta bancária compra amor e felicidade. Triste constatar que uma vida de prazeres pode mais rapidamente nos levar à morte. E, afinal, o que é ser rico? O que é possuir coisas? Será que elas realmente são nossas e permanecerão perenemente nossas?
Há ainda aqueles que fazem cirurgias estéticas para evitar que o retrato de Dorian Gray, escondido no sótão, envelheça e se torne feio como o diabo. As almas podem apodrecer e morrer se não forem regadas com afeto e amor. E o coração empedrado, a cabeça cheia de escorpiões e aranhas, e o vazio que nos inunda, são o preço cobrado pela matéria que à nossa volta nos oprime, quando deixamos de transcender e chafurdamos no apego ao superficial e fútil.
Assim, o caminho do autoconhecimento é árduo, é como se descascássemos uma fruta em busca de seu caroço. Porém, a busca de nossa essência equivale mais a descascar uma cebola: choramos com cada casca descascada, mas ao final, nada sobra. Eu não sou meu corpo, meu nome, minha família, nação, classe social, partido político, religião, profissão, conta bancária, time de futebol; não sou filho, esposo, pai, irmão, colega, amigo ou inimigo, ou melhor, não me reduzo ou esgoto em nada disto. Afinal, quem sou eu? Sou um não-eu, um processo de sentir, pensar, ver e agir, que se dá em rede, que não tem centro, que não é comandado. Há um avião voando, mas o piloto não existe, tudo é só viagem, movimento, impermanência.
Às vezes penso, como os budistas, que viver é simples, basta respirar e estar atento a cada momento, sem desejos, aspirações ou pretensões absurdas. Ser feliz é estar vivo e saudável, de bem com o mundo, na sintonia dos outros e aberto às transformações da impermanência.
Gostaria de apenas ser, sem o desgaste do bom ou do ruim, do certo e do errado. Ser como uma flor ou uma pedra, cujo sentido está em si, sem nenhum acréscimo. Quisera ser como se não fora, pois não-ser é a grande escolha, já que não percebemos que o universo não foi feito para nós, e que a verdade se esconde de nós enquanto múltipla e inacessível em sua plenitude.
É difícil ser vazio, espelho, caminhar sem deixar pegadas. Mas também é simples apenas ser, deixar fluir, focar, ver, sem discriminar, agir, mas em harmonia com os outros e o universo. Como? Sendo não egocêntrico, não egoísta, não-eu, sem desejo, apego ou ilusão. Estou tentando só ser, ou melhor, não-ser, retomando Hamlet.
Liberdade é desapego. O desejo só nos traz medo, preocupação e ansiedade. Sofrer é o resultado de ver uma miragem como algo real e verdadeiro. Assim, para haver alegria, plenitude de vida e paz, é necessário ficar nu do mundo, despir-se das coisas, abraçar todos os seres e pessoas, acolher quem busca refúgio, auxiliar quem busca auxílio, e amar apenas como um sol que irradia luz.