Trecho da obra “O Evangelho Segundo Judas Iscariotes”
Chamar-me-ão de Judas Iscariotes, o traidor, para além da minha existência. E isto é ao mesmo tempo verdadeiro e falso, no mínimo é injusto sob vários aspectos. Primeiro, porque tive motivos nobres para fazer o que fiz. E se delatei Jesus, foi para salvar sua Obra e permitir a redenção de nosso povo. Apesar da traição ser execrada por todos e a tradição, ninguém jamais será julgado por ela perante a Lei, porque trair não é crime, exceto a pátria. Poderá haver crime somente na execução de atos outros que, em geral, a acompanham: o assassinato, a prisão, a derrota política ou bélica, o apedrejamento, a execração pública.
Traição só é crime quando assume outros nomes: adultério, fornicação, sodomia, espionagem, golpe, revolta, sublevação, motim, terrorismo, sabotagem, boicote… Quando se trai o inimigo da pátria ou um criminoso, vira-se herói. Quando se trai companheiros de crime se é perdoado, ao menos em parte, pela justiça dos homens. Em muitos casos a traição é incentivada e a delação é aconselhada, pois nossa pena se atenua quando, em nome do interesse coletivo, nos tornamos informantes.
Porém, a tradição oral diz que se pagãos disserem a um grupo de mulheres: “Deem-nos uma para que possamos profaná-la, pois do contrário profanaremos todas”, devemos permitir que profanem todas, porque a traição é extremamente condenada pela Torah, nela é proibido sacrificar uma vida para salvar outra. Mas se isto de um lado significa que eu mereço ser condenado e execrado, de outro também significa que o Mestre Jesus, mesmo sendo o Cristo, não tinha o direito de sacrificar-se ou ser sacrificado para resgatar os pecados de nosso povo. Assim, mesmo que à luz da Lei eu não possa ser julgado ou condenado, não poderei dormir sossegado à sombra da minha consciência, pois que trair é um ato vil, digno do mais veemente desprezo. Quem trai não é confiável, está condenado à solidão, só poderá contar com seu egoísmo infeliz e trágico.