Vivemos novos tempos. A Europa unificou-se, a U.R.S.S. foi desmantelada por uma revolução popular, e com ela veio abaixo o Muro de Berlim e a Alemanha foi reunificada. Sem o tacão soviético, os demais países socialistas abriram suas economias e se tornaram capitalistas. Resta uma Coréia do Norte sob uma ditadura hereditária, cheia de famintos e miseráveis. Resiste uma Cuba de economia combalida, hoje quase caricata na pessoa de seu ditador discursador. Enquanto a China, a única que poderia contar, emerge como potência econômica capitalista, apesar de politicamente manter-se marxista, com partido único e repressão. E os U.S.A. são, indiscutivelmente, a única superpotência, econômica e militar, um verdadeiro império universal.
Conflitos de cunho étnico e culturais surgiram em substituição aos confrontos ideológicos, na Iugoslávia, Irlanda, Chechênia, Cachemira, Afeganistão, Iraque e Palestina. O mundo islâmico, que em sua vertente fundamentalista tem ódio ao ocidente e à modernização, teve o capitalismo como inimigo no 11 de setembro, mas também o comunismo antes, no Afeganistão do tempo da União Soviética. O mundo certamente ficou mais complexo do que era, a visão maniqueísta de mocinhos e bandidos, produto da guerra fria, já não mais serve para explicá-lo. Do mesmo modo, os conceitos de esquerda e direita cada vez mais nos parecem inadequados.
1. O QUE É SER ESQUERDA?
O termo “esquerda” pode ter múltiplas significações e aplicar-se a uma gama ampla do espectro ideológico, como socialistas utópicos, anarquistas, marxistas e sociais democratas, chamados também de socialistas democráticos e trabalhistas. Tradicionalmente rotula-se como esquerda os seus extremos: o anarquismo e todas as formas de marxismo (leninista, stalinista, maoísta e trotskista). Esta esquerda hoje é chamada de retrógrada e radical, pois na globalização só é vista como viável a proposta social democrata, considerada uma esquerda moderna, democrática e progressista. Mas a social democracia também tem enfrentado crises e contradições, sendo acusada pelos marxistas de ser neoliberal e direitista.
Se a opção marxista ao poder perdeu sentido e significado, a crítica de esquerda ao capitalismo, em parte continua válida, ainda mais frente às mazelas sociais resultantes do neoliberalismo globalizado. Porém, hoje a extrema esquerda atua mais como força de pressão, provocando mudanças, pois na democracia o eleitorado tende ao centro, tornando os partidos políticos de extrema esquerda só passíveis de participar do poder em amplas alianças. Basta lembrar do PCB ter virado PPS, e do papel que partidos como PSTU, PCO e PSOL, desempenham junto com parte da base do PT mais à esquerda.
Outra forma de ação efetiva da esquerda, se dá no âmbito das ONGs, em que militâncias em prol de questões pontuais tendem a obter resultados positivos, pois a defesa de causas ecológicas e pacifistas, assim como a de todos os excluídos (índios, homossexuais, seringueiros, crianças de rua, sem teto, terra e emprego) sempre terão um certo apelo emocional junto à opinião pública. Mas a defesa das minorias e de questões locais ou de categorias específicas, não é próprio do pensamento de Karl Marx.
2. A CRISE DA ESQUERDA:
A esquerda, que parecia a detentora da verdade, da moralidade e da esperança, mostra cada vez mais uma cara feia de incompetência e maldade. A China, que invadiu o Tibet e fez a Revolução Cultural, é campeã na violação dos direitos humanos e na execução de penas de morte, e demonstrou, com o massacre da Praça da Paz Celestial, que não pretende tão cedo vir a se democratizar, apesar das pressões neste sentido. Grupos nacionalistas e revolucionários de esquerda tornaram-se contraventores: as FARC envolveram-se com o narcotráfico e o negócio dos seqüestros, parte do IRA tem assaltado bancos e cometido assassinatos e crimes comuns, cada vez mais parecido com uma quadrilha bandidos. Enquanto isto, o MST tira a máscara da Reforma Agrária e se assume como revolucionário, mas se enreda no desvio de recursos públicos e em atos de vandalismo, cada vez mais distante de um autêntico movimento político. Pobre esquerda que, fracassada e de moral baixo, enfrenta uma aguda crise de identidade, além da carência de verdadeiros líderes.
3. A NOVA CARA DA ESQUERDA:
O marxismo se afasta cada vez mais do pensamento marxiano (de Karl Marx). Por exemplo, no Brasil as esquerdas falam de inclusão social, e posicionam o MST na vanguarda revolucionária, mas inclusão ao capitalismo nunca foi uma bandeira marxista. E no pensamento de Marx, sem terra, sem teto e desempregados não são proletários, são marginais, e marginais não fazem revolução. É claro que tal mudança deu-se porque, no capitalismo industrializado, parte do proletariado teve acesso ao lucro, transformando-se em pequena burguesia (classe média), deixando assim de ser força revolucionária, como aponta Marcuse. Os operários metalúrgicos do ABC paulista hoje possuem casa própria, carros do ano, freqüentam shoppings e têm filhos na universidade. Além disto, cada vez mais os líderes sindicais se aburguesam, junto com os militantes de esquerda que passam a usufruir do poder, o que vem transformando o PT de um partido basista em um partido cupulista. Isto concomitante com um enfraquecimento gradual dos partidos políticos e sindicatos, e o fortalecimento das ONGs.
A social democracia também não mais vem se definindo a partir de bandeiras tradicionais da esquerda. Além dela ter aberto mão da revolução armada e da ditadura do proletariado, optando pela democracia e assumindo o capitalismo e seu mercado, para tentar torná-lo mais justo e distributivo, ela hoje se vê obrigada também a abandonar a tributação progressiva e a remuneração justa, que sempre foram os seus principais instrumentos distributivos. Na globalização, taxar a produção e pagar altos salários é retirar a competitividade das empresas, provocando recessão, desemprego e menor arrecadação de impostos. Por isto a sociedade tem se insurgido contra aumentos de impostos, deixando os governantes quase sem opções frente às necessidades sociais.
Ser de esquerda hoje é uma questão moral, significa a opção preferencial pelos trabalhadores em relação ao capital, à maioria em relação às elites e, principalmente, implica um compromisso com a justiça social e a distribuição de renda. Porém, não significa necessariamente a economia nacionalista e fechada em vez da internacionalização, ou mesmo a estatização em vez da privatização, já que certas privatizações podem vir a beneficiar os trabalhadores, como foi o caso da telefonia no Brasil. Mas, ainda persiste a idéia de que a esquerda moderna deva ser desenvolvimentista, buscando o pleno emprego keynesiano, em vez de adotar uma política econômica recessiva e neoliberal, como a incentivada pelo FMI.
Concluindo, ser de esquerda hoje significa a opção pela solução coletiva em vez da individual, sem excluir as minorias. A velha esquerda está morrendo em Cuba, na China, na Coréia e na globalização capitalista. Há também uma social democracia de cara nova, e podemos encontrá-la em parte nos Governos FHC e Lula. Mas, principalmente, há ainda uma nova esquerda que está viva e pulsante nas ONGs e em suas bandeiras anti-globalização, vistas no Fórum Social Mundial. Daí que ser de esquerda hoje significa ser radical na defesa de bandeiras que criticam o capitalismo e a globalização, em todas as suas formas e em qualquer de suas questões subjacentes.
Antônio Henriques
Escritor, professor da ESPM,
e diretor do Museu de Comunicação Social.
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