O Anjo da Tempestade
“O ANJO DA TEMPESTADE” é uma novela que aprofunda em sua trama ficcional as grandes questões existenciais, vistas sob um olhar poético e filosófico. Tal obra é uma narrativa curta e densa, em que o drama dos personagens é dissecado sob o prisma psicológico, abrindo para a transcendência. Nela emergem temas como: amor, sexualidade, juventude, velhice, morte, religião, política e espiritualidade. Seu texto é fluído, e seu narrador, diante da morte, reflete sobre sua vida, ressignificando suas memórias.
Trecho da Obra “O Anjo da Tempestade”
Precisei fazer análise porque pela segunda vez caíra numa mesma estrutura: quando amava era feliz no início, mas logo cedo, sem motivo, entrava como sempre em depressão. Maltratava as mulheres pela rigidez e severidade do meu comportamento ou por minha indiferença. Enfim, nada me satisfazia, e logo me punha a olhar a mulher do próximo, a sonhar com circunstâncias bem diversas do meu momento, como quem quer fugir, sumir, partir pra outra. Enlouquecia aos poucos e não tinha a coragem suficiente pra mudar. Foi quando escrevi pra Sara:
Querida Sara!
A realidade não é feita apenas de sonhos, é produto primeiro do despertar para algumas concretudes imediatas. E, neste exato instante, estou aqui, longe de ti, porque isto tem e deve ser assim. Não há outro modo possível das coisas serem entre nós. Fostes um sonho bom, pelo muito que me significaste de positivo e valioso, mas as coisas poderiam ter sido diferentes. Hoje, não há sequer o que lembrar, a não ser este vazio e a sensação de que a vida passou ao largo, e não ficou nenhum resquício daquilo que foi um dia grande e arrebatador. O esquecimento é triste, tanto quanto a lembrança do que poderia ter sido e não foi.
Contigo eu falhei. Esperei de ti alguma coisa que eu sei, tu não poderias me dar. Quis materializar um sonho que concretamente se converteu num pesadelo. Sempre preferi as assombrações palpáveis às abstrações oníricas, devido talvez à minha necessidade visceral de realidade. Necessitei sempre de experiências fortes que me envolvessem nas coisas, que me jogassem por terra, porque eu sempre vivi no ar e fui um sonhador desperto, um alucinado. Existe em mim uma face desperta que assusta, à luz do dia eu revelo um rosto cansado de olhar profundo e triste, com rugas do tempo numa cabeça cheia de escorpiões e aranhas, o que inviabiliza qualquer possibilidade de vida a dois.
Sob determinado prisma foi bom assim, existe uma certa paz das coisas que se conservam, há até uma certa alegria naquilo que não se muda. Talvez seja gostoso lembrarmos um do outro em nossos momentos de ingenuidade, em que trocávamos sorrisos, olhares e silêncios, como duas crianças que se amam. Posso até imaginar uma música pairando no ar, um céu azul onde pássaros revoam no espaço, um bosque onde plantas, flores e fadas, tornam possível um passeio de mãos dadas sob o sol. Posso imaginar até o que não se deu, o irreal, mas isto me põe quase em desespero.
Prefiro o caos à ordem preestabelecida. Prefiro a instabilidade mutante à fixidez imutável daquilo que é eterno, porque eu nasci para o inconformismo e a revolta. Trago dentro de mim o sinal dos malditos: a inquietude. E, ao mesmo tempo, carrego na alma a benção dos escolhidos: a ausência de pressa e a certeza dos fins. Mas a certeza dos fins não me afasta a dúvida dos meios, e não me isenta daqueles momentos de desamparo. Mesmo neles não me desespero, porque desaprendi de esperar.
Penso que tu alimentaste minha revolta e minha inquietude justamente por teu conformismo e acomodação. Busquei-te em outras pessoas e encontrei outras pessoas, te perdendo mais uma vez. Isto é o que não deveria existir: a sensação de perda e o distanciamento, o que me parece irreversível…
Um dia, quando eu quase não mais lembrar teu nome, e ficar fazendo um esforço para recordar teu rosto, tentando te referenciar aos meus passados dias, dar-me-ei conta que alguém se perdeu de mim na minha memória, definitivamente. E neste futuro que antevejo, tu serás apenas uma sombra anônima querendo se fazer presente, querendo reivindicar um nome, um momento, um pensamento, mas sem forças para subsistir sob a luz de um sol forte, iluminando uma velhice cedendo seu lugar aos jovens, cheios de revolta. Enquanto eu, já quieto, em paz e sem memória, irei abraçando a morte.
Teu ex-amor
Não lembro se ela me respondeu, muito menos qual resposta. Mas aos poucos compreendi que o passado precisava ser resgatado dentro de mim e não fora. A análise me trouxe à tona o fato de que, dentro das quatro paredes do quarto, eu tinha problemas sexuais e afetivos. Eu não era ruim de cama, mas sim de coração, tinha medo de ser rejeitado e por isto não me entregava, não me submetia. Era capaz de trepar com competência de um grande amante, mas no fundo era tudo acrobacia sexual, faltava alma. Eu era no ato como um animal assustado, incapaz de sair de si e ficar com o outro. De modo sutil estava longe e bloqueava o fluxo de energia recíproca. Como compensação desta falha me tornava promíscuo. A minha busca insana de amor equivalia à tentativa de encher de água um balde sem fundo. Por mais que encontrasse quem me amasse, padeceria de sede e insatisfeito, pois minha carência só poderia ser preenchida com meu próprio amor. Eu era alguém carente de amar e não de ser amado, precisava urgentemente aprender a me doar, a me entregar incondicionalmente. Tinha uma ânsia de sentir novas emoções e sentimentos, de modo a me destruir cotidianamente: eu era de fato um suicida que optara por se matar em doses homeopáticas, qual masoquista que escolhesse o método de morte que lhe trouxesse o maior e o mais extenso sofrimento.