Introdução ao Orientalismo
O livro INTRODUÇÃO AO ORIENTALISMO, editado pela editora EST, de Porto Alegre, em 1991, expõe o que é orientalismo, sintetiza o pensamento oriental, abarcando Índia, China, Japão e Tibet. Aparecem nela o Yoga e suas vertentes, o Budismo em suas várias versões, o I-Ching, o Taoísmo, o Zen, o Bushidô e o pensamento tibetano. Inclui ainda, numa segunda parte, um estudo sobre a influência do orientalismo sobre a cultura ocidental, abarcando as áreas da filosofia, ciência, psicanálise e arte (artes plásticas, dança, música, teatro e literatura), incluindo a questão da contracultura e o preconceito sobre o Oriente existente no Ocidente. E, conclui com considerações sobre as principais ideias do Oriente no Ocidente, quais sejam: karma, reencarnação, corporeidade psíquica, poder mental e consciência cósmica.
Trecho da Obra "Introdução ao Orientalismo"
Entendemos por ciência o conhecimento abstrato e matematizável que constrói modelos teóricos do “real”. Com tais modelos opera a tecnologia, o saber aplicado ao fazer sobre o concreto. Todos os modelos possuem limitações em sua aplicabilidade e, a abordagem da realidade física tem como pressuposto, segundo Bohr, que vivemos em um mundo abstrato. Até certo ponto, o “real” é aquilo que vemos, já que todos os modelos são construções mentais, criações de nossa consciência. O aspecto experimental da ciência foi sendo privilegiado através do desenvolvimento do método científico e do progresso técnico, porém, a experimentação era ontem distinta do que é hoje. A física clássica newtoniana é um exemplo de como o homem pode experimentar sem interferir, pois equivale a uma descrição do universo sob a ótica de quem contempla. Vê uma pedra rolar, uma maçã cair, um raio de sol formar o arco-íris através das gotas de chuva, etc.
Atualmente não é assim, a física relativística e quântica descrevem um mundo que está além e aquém de nossa percepção sensorial, e que extrapola nosso senso comum e nossa experiência imediata. Para chegarem tal conhecimento é necessário máquinas de pesquisa, em geral aceleradores de partículas, e experiências construídas e planejadas em cada detalhe. Como se saber se as conclusões são expressões das leis naturais se pesquisar é construir um modelo artificial? Como saber se o modelo corresponde ao real? Como saber se nossas conclusões não passam de meras construções mentais sem substância própria?
Tais questões tem sido refletidas, principalmente por físicos, que tentam tecer paralelos entre filosofia e física. O mais conhecido exemplo é o de Fritjof Capra com seu livro “O Tão da Física”, onde demonstra que enquanto a física clássica está associada a uma visão de mundo própria da filosofia grega, a física quântica está aparentada com uma concepção de universo inerente ao pensamento oriental. Capra aborda particularmente o dualismo monista do I-Ching, o Taoísmo, o Hinduismo, o Budismo Clássico e o Zen. Fred Alan Wolf, de modo semelhante, extrapola a nível do pensamento alguns fatos científicos, esboçando especulativamente o que se chama de “física visionária”, e desemboca numa área limítrofe entre astrofísica e parapsicologia.
Os fatos físicos e teorias científicas passíveis de um paralelo com a filosofia oriental são inúmeros, como a lei de Dirac, de que “a cada partícula corresponde uma antipartícula de massa igual e carga contrária”, o que de imediato nos lembra o dualismo do Yin e Yang do pensamento chinês. Os exemplos seriam muitos, porém cabe aqui é registrar a existência de tal tendência mais do que analisá-la.
Em verdade, por trás do paralelo entre a física clássica e pensamento grego de um lado, e a física quântica e o pensamento oriental de outro, existe a oposição entre o realismo e o idealismo. Quando dizemos que a ciência constrói modelos teóricos do “real”, usamos aspas porque sem elas estaríamos presos a uma concepção realista, que concebe a existência de uma realidade objetiva independente do homem. Para o realismo uma teoria sobre o real é válida e correta quando pode ser validada e medida pela experiência humana, o que supõe a existência do objeto isolado, que não é alterado em suas propriedades pela teoria e experimentação. Em outras palavras, o universo existe independentemente do homem, mas pode ter suas leis e verdades reveladas pela razão humana. A natureza pode ser descrita matematicamente porque é definida, coerente e exata; quaisquer limitações ou erros, aproximações ou desvios, são próprios faz falhas da teoria ou da razão, e não da natureza em si. Toda a física clássica newtoniana é realista, mesmo Einstein defendeu um realismo teísta de tradição iluminista, enquanto concebia um mundo regido por leis exatas porque criado por um Deus que não admite o acaso.
Em oposição a tal visão temos a física quântica, o formalismo de Von Neumann e a filosofia de Wittgenstein. Podemos dizer, de modo simplificado, que a mecânica quântica, ao trabalhar uma concepção ondulatória do elétron e da luz, e ao introduzir o princípio da incerteza de Heisenberg, desenvolveu uma descrição estatística e inexata do real, colocando em xeque a própria noção de realidade objetiva. “Objeto” é tudo o que está fora do sujeito e independe do mesmo. Portanto, como falar de ’objetividade”se não se admite mais um real apriori, independente do sujeito? Daí a possibilidade de aceitarmos em termos práticos a teoria da complementariedade de Niels Bohr, burlando assim os paradoxos evidentes da física clássica, abalada em seus alicerces por experimentos que não podem ser explicados pelo enfoque realista inerente à ela. Segundo Bohr, duas teorias são complementares quando em relação ao mesmo universo de discurso elas desenvolvem duas descrições diferentes e mutuamente excludentes, mas são ambas necessárias para que todos os fatos experimentados sejam explicados. Hoje está começando a ficar claro para a física que o mundo é aquilo que pensamos que seja, que a noção de real e objeto não pode existir separada da mente que os concebe e pensa. Como saber se sem nós o real é como pensamos que seja conosco? Como pensar o pensável sem pensar junto o pensador e o próprio ato de pensar? Daí que a realidade só é real enquanto experimentada e pensada, não existe em si. Ou melhor, diz Buda no Lankavatara-Sutra: “…aquilo que é compreendido nada mais é que o mundo objetivo percebido e discriminado pelo intelecto, que é nada mais que a própria mente”.
A mente ao ver os objetos vê a si mesma. Tal posição é idealista, mas Buda resolve a oposição entre realismo e idealismo com uma imagem: “…a realidade do mundo é semelhante ao círculo formado por uma braza que gira”.
Podemos dizer que o círculo é irreal enquanto ilusão, e real enquanto experiência de consenso entre todos que o vêem. Temos aqui uma objetividade experimental, aceita por todos, que não invalida a verdade de que o círculo é uma construção mental que não possui realidade em si. Em outras palavras a objetividade não é critério de verdade porque jamais é absoluta, depende sempre de sua relação com a inteligência humana e seu enfoque. Porém, isto não invalida em absoluto a física clássica, apenas a relativiza. O fato do espaço ser curvo e a geometria de Euclides ser uma mera construção mental que não corresponde à “realidade física” não impede que com ela os engenheiros construam prédios que são “reais” e “existem” no sentido “físico”. Isto que a física está começando a entender e a filosofia ocidental a pensar mais detidamente já estava presente no pensamento oriental no mínimo há dois milênios.
Quando nos damos conta que aquilo que a tradição cientifica chama de “objetividade” surge da separação entre sujeito e objeto, que a percepção é uma construção imaginativa do mental, neste momento lançamos uma ponte sobre o abismo que há entre sujeito e objeto, e paramos de perceber discriminando do todo. Tal enfoque supõe uma abordagem do real sem dicotomias, em que nos debruçamos sobre cada objeto como se ele fosse o universo inteiro, e cada instante como toda uma vida. Não há separação entre o ser e os entes, nós somos cada coisa e tudo está em nós.