Na II Bienal do Mercosul, numa instalação feita numa carvoaria à beira do Guaíba, o público pode ver, dentre outras coisas, num buraco sem tijolo da parede, um vídeo rodando um filme documentário que retrata o artista Iberê Camargo pintando. Tal filme é uma das produções do artista plástico Joel Pizzini que produziu “o Pintor”, curta metragem de 1995, produção da qual participou o diretor de fotografia, artista plástico, arquiteto e cineasta carioca Mário Carneiro.
Mário Carneiro conheceu Iberê Camargo em Paris, ficaram amigos, e juntos assistiram as aulas de Poliakof, assistente de André Lhote. Iberê chegou na Europa em 1948, onde estudou gravura com Carlos Petrucci, pintura com De Chirico, e freqüentou o atelier de André Lhote. Mário diz que De Chirico só influenciou Iberê do ponto de vista técnico, não pictórico e estético. Para Iberê, “os bons pintores são os que conseguem modificar a nossa visão”. Mário entende que De Chirico conseguiu isto, porque ninguém vai a Florença sem pensar em sua obra, assim como ninguém vai a Ouro Preto sem ver Guinard e à praia sem ver Panceti.
Quando do retorno de ambos ao Brasil, em 1949, Mário Carneiro tornou-se aluno de gravura de Iberê. No mesmo ano Mário Carneiro retornou à Europa, onde estudou gravura com Friedlaender e, depois, em Paris, dedica-se à gravura e a estudar urbanismo. É deste período, anos 50 e 60, a correspondência entre ele e Iberê, composta de cartas cheias de considerações sobre pintura e técnicas de gravura, pois Iberê neste período tornara-se professor de gravura no Instituto de Belas Artes do RJ. Por isto Mário incluiu no seu livro uma espécie de Manual para Aprendizado da Gravura, feito por Iberê para subsidiar suas aulas.
Tais cartas possuem um conteúdo extremamente denso de informações e conhecimentos de gravura, pintura e arte, o que atesta que Iberê Camargo foi um artista completo, capaz não só de produzir arte da mais alta qualidade, mas capaz também de ver e refletir sobre a produção artística sua e alheia, capaz de compreender, estudar e experimentar técnicas várias e de várias épocas, utilizadas pelos grandes mestres. Isto até certo ponto é raro, já que nossa época de narcisismo faz com que todos se voltem para si mesmos, querendo brilhar sem apropriar-se do conhecimento do próximo, querendo produzir arte sem capacidade de ver e ouvir.
Iberê não era assim, ele possuía uma grande capacidade de compreender a pintura quando analisava ou copiava a obra dos grandes mestres, anotando meticulosamente todas as suas observações. Mostrou à Mário, por exemplo, que em geral, cada quadro tinha dois terços de sua área cobertos por meia-tinta e um terço dividido entre claros e escuros (que atraíam o olhar). Ensinava a pintar sempre acompanhando a forma e o volume: para que o quadro fique “de pé”, “com osso”, como na estética oriental. Notava que Rubens usava cores quentes na luz e cores frias na sombra, e áreas com gradações de cinza para diminuir o impacto do contraste. Também comentava sobre os cinzas coloridos de Goya, e ensinava: “quanto maior é o contraste entre o claro e o escuro, menor é o contraste de cor e vice-versa”. “Por isto Matisse não possuía preocupação com luz e sombra, em sua obra tudo é cor” – pensava Mário Carneiro, assimilando os conhecimentos que mais tarde usaria ao fotografar em cinema.
As cartas de Iberê demonstram mais, volta e meia pontuam elas questões políticas, demonstrando o temperamento aguerrido e difícil de Iberê, assim como sua preocupação com as questões sociais e a vida pública. Dizem elas ainda de uma relação de amizade com Mário Carneiro, costurada pela paixão comum pela arte. É gratificante podermos ter acesso ao Iberê escritor e pensador da arte, aprender de uma maneira organizada tudo sobre gravura e, de acréscimo, ainda usufruir de um texto que pulsa vida, história da arte, companheirismo e amizade.
Mário viu Iberê começar a pintar carretéis sobre uma mesa e, aos poucos, o plano da mesa ir se inclinando, progressivamente, até tornar-se o plano do quadro. Daí à abstração foi um passo, os carretéis de Iberê haviam virado uma “coisa cósmica”, “discos voadores” no dizer de Mário. Iberê escreveu: “…continuo fiel ao meu conceito de arte, construindo o quadro sem recorrer a elementos formais, transformando a natureza em ritmos e sensações coloridas (…) quando falo em ritmo e cor, não quero dizer abstracionismo no sentido que empregam.” (pág. 65).
E noutra carta, de 1954, encontramos: “O diabo é que nós aqui, com este calamitoso estado de coisas, não podemos sair do conhecimento teórico (…). (…) nós que não somos vendedores de batatas, nem alcoviteiros de letra de fôrma, nem políticos da puta que pariu, ficamos contentes em apenas enriquecer o nosso conhecimento. Pouco importas o que eu possa fazer, o que importa é o que eu sou. O Eu é este nosso pedaço que não pode sofrer a devassa, e é mais forte e é maior do que todo este poderio com que todos os filhos da puta do mundo procuram inultimente destruir. Bem, vou ficar por aqui para não te dar a impressão de que eu esteja alucinado. Mas se eu estiver, não me aborreço, a loucura é a única coisa que engrandece.”(pág. 105).
Referência Bibliográfica:
CAMARGO, Iberê / CARNEIRO, Mário. Correspondência Iberê Camargo – Mário Carneiro. Editora Casa da Palavra, , Rio de Janeiro, 1999.