1 – INTRODUÇÃO:
O homem, tendo evoluído do animal, se distinguiu do mesmo por dois fatores básicos: o desenvolvimento do cérebro e da capacidade instrumental. Com o tempo, a necessidade transformou o desenvolvimento cerebral em ciência e o instrumental em técnica. Mas o fazer humano não produziu só o imediatamente útil, consi derou o homem também necessário à sua sobrevivência um domínio da natureza de cunho mágico: assim nasceu a arte.
1.1 – A produção humana:
Karl Marx nos Manuscritos Econômico-Filosóficos afirma que o homem se distingue do animal porque produz suas condições de vida, definindo-se como produtor: o homem é o seu trabalho. Diz Marx que o animal produz ninhos, habitações, colméias, porém sempre segundo as necessidades físicas da espécie, num sentido imediato e parcial (para si e seus filhotes). Enquanto que o homem produz livre e universalmente, porque não subordina obrigatoriamente o produto criado às necessidades físicas imediatas e particulares, pode, segundo ele, formar “também segundo as leis da beleza”? (1)
Entendemos que mesmo a beleza é uma espécie de necessidade, já diversa da necessidade animal, mas que pode permitir uma concepção de homem como ser que produz por necessidade, quer estas sejam particulares ou universais, remotas ou imediatas, concretas ou subjetivas. Tais conclusões não negam a produção como um ato livre, porque para Marx e Engels a liberdade é a consciência histórica das necessidades. Entretanto, tal consciência deve manifestar-se como um conhecimento em ato, só há verdadeira liberdade numa praxis revolucionária. Quando Marx diz de uma produção que se dá segundo as leis da beleza, ele está aludindo à criação artística, que deve ser tomada como um ato livre em dois sentidos:
1º livre das necessidades físicas imediatas e particulares: a arte não deve estar subordinada à necessidade econômica de sobrevivência;
2º Iivre no sentido de nascer de uma consciência das necessidades históricas e, sendo assim, a arte suporia uma intervenção sobre a realidade, como uma praxis revolucionária.
Porém, sabemos que aquilo que consagramos como arte mais reproduz as estruturas de poder e as relações de produção do que se opõe a elas, se dá socialmente como uma mercadoria qualquer, comprometendo-se desde o ato criativo corn a necessidade de sobrevivência do artista e, ainda, que ao prender-se à idéia de beleza, a arte passou a depender sempre do que a ideologia dominante aceita por belo e artístico.
Como tradicionalmente se entende que a produção que visa o belo é artística, tomou-se sempre a estética como a ciência do beIo, aquela disciplina que tern como objeto a beleza.
1.2 – 0 saber filosófico:
Hoje não se concebe o ser humano sem o intrínseco do fazer artístico, não importando a forma ou o tipo de arte considerada: o homem é um animal artista. Todos nós produzimos e contemplamos, mas nem todos produzimos objetos essencialmente contemplativos, nem todos são profissionalmente artistas” Do mesmo modo, desde Aristóteles a Benedetto Croce se diz que todos os homens são filósofos. Concomitante ao fazer técnico e artístico teorizou o homem, tornando o pensar filosófico um fator essencial do fenômeno cultural: o homem é um animal que pensa, que tem consciência de que tem consciência. Mas nem todos os homens criaram sistemas filosóficos, ampliaram sua visão a um ponto de vista de totalidade, abstraíram de sua imediata circunstância, adquiriram uma perspectiva distanciada e crítica.
Cada vez mais se considera ciência aquele conhecimento que prima pela objetividade, que é passível de ser colocado sob formulação matemática. A Filosofia escapa a tais determinantes configurando-se como um saber não-científico. Assim como a técnica não é ciência mas a supõe e é sua aplicação, assim também a arte não é uma forma de saber, mas supõe e expressa um conhecimento da realidade e exige um certo domínio técnico. Assim como cabe à Filosofia refletir a ciência e a técnica, cabe também a ela tomar como objeto a produção artística. Dai o porque de concordarmos com Mikel Dufrenne que defende uma Filosofia da Arte, endossando a idéia de Hegel de que a estética pertence à Filosofia. A arte, sendo um objeto que implica em avaliação, nos reporta à problemática dos valores que contém três braços: o sujeito que avalia, o objeto avaliado e o valor atribuído ao mesmo. No caso da arte, o sujeito se desdobra em três: o produtor, o receptor e o intermediário, o que torna a estética deveras complicada.
O que nos interessa inicialmente é o fato de que, por supor juízos de valor, a apreciação da arte conterá sempre uma dimensão subjetiva, tornando, em conseqüência, a estética um saber interpretativo. A estética é Filosofia porque ela não existe no singular, somente no plural. E quase todas as correntes de interpretação da arte são correntes já pré-existentes no pensamento filosófico, independentemente de suas aplicações à arte. E o que nós entendemos por Filosofia da Arte engloba o que alguns chamam de Psicologia da Arte, Sociologia da Arte, Psicanálise da Arte e até História da Arte, como a que nos oferece Hadjinicolaou.
2 – CRÍTICA DE HADJINICOLAOU:
Hadjinicolaou em sua obra História da Arte e Luta deClasses diz que:
“A arte não existe; o que existe são os diversos tipos de produção, como a produção de imagens, a produção musical, etc. Dito isto, parece agora evidente que todas as imagens produzidas na história — e não apenas as consideradas ‘obras-primas’ – fazem parte da produção de irnagens”.(2)
A partir daí Hadjinicolaou diz que o definidor de uma obra-prima, o que distingue uma imagem bela de uma não bela, e uma obra maior de uma obra menor, é a ideologia imagética da obra. Ele assim reduz a arte à ideologia imagética, não concebendo reações estéticas que independam da ideologia da imagem, mas admitindo que a ideologia imagética é irredutível à ideologia em geral, porque “a ideologia político-social do artista não corresponde necessariamente à de uma das suas obras” (3). Com isto cada obra produz no espectador reações que vão do prazer ao desprazer, e que dependem da ideologia do mesmo e da ideologia imagética da obra. Em suma, diz Hadjinicolaou que:
“…o efeito estético mais não é do que o prazer experimentado pelo espectador que se reconhece na ideologia imagética da obra.”(4)
Tais concepções resultam, por parte de Hadjinicolaou, na negação de uma ciência estética que fica sem objeto: o belo e o efeito estético específico não existem para ele. Escreve Hadjinicolaou:
°’A estética não tem objeto porque nós refutamos não só a idéia do Belo {Hegel) mas também a tese segundo a qual o Belo é sentido subjetivamente por cada indivíduo.”(5)
E propõe ele em lugar da estética uma História da arte que tenha como objeto a ideologia imagética (que pertence à ideologia estética dos grupos sociais) e que as especulações sobre o belo cedam lugar a análises concretas sobre um estilo ou uma obra específicos.
3 – CRÍTICA A HADJIN ICOLAOU:
3.1 – O que é arte?
A concepção de Hadjinicolaou de que não existe arte e, sim, somente tipos de produção, não é nova. A palavra arte vem do latim – “ars”, “artis” – raiz que originou as palavras artefato, artifício e artesão. Ou seja, entendia-se inicialmente por arte os objetos feitos por um artesão; só posteriormente é que se distinguiu o fazer com arte do mero fazer técnico. Daí que o objeto artístico adquire como característica definidora uma qualidade estética essencial, enquanto que o mero objeto técnico é essencialmente utilitário, não supõe como função primeira a contemplação. À parte desta função estética específica, o termo “arte” passou a ser aplicado num sentido amplo ao fazer com habilidade, dando origem a expressões ambíguas como: arte culinária, arte marcial (um fazer não produtivo), etc. Em resumo: concordamos com Hadjinicolaou de que o que existe são formas de produção, mas discordamos de que não sejam arte, desde os gregos arte é produção. Entendemos que Hadjinicolaou critique a separação entre o fazer artistíco e a pura técnica, mostrando a dificuldade de definir o que seja função estética essencial. Mas vemos tal dificuldade somente na analise das vanguardas contemporâneas que utilizam produtos industrializados, feitos em série, ou mesmos propostas humanas, como obras de arte. Não vemos na análise da História da arte que nos foi legada qualquer obstáculo na identificação do que seja arte. A grande dificuldade estaria somente na delimitação do que seria arte maior e arte dita popular, mas fechamos corn Hadjinicolaou de que tal Iimite é ideológico e não exclusivamente estético, por isso pensamos que a História da arte não pode fazer tal distinção. E Hadjinicolaou, apesar de denunciar a distinção entre arte maior e menor, na prática não foge à regra e toma como objeto de estudo a arte consagrada como tal. Aliás, seu método de análise da ideologia imagética da obra de arte só é passível de ser aplicado às artes plásticas, tidas como tais e presas a uma expressão “figurativa”. No momento em que Hadjinicolaou concebe que toda ideologia imagética é ideologia da classe dominante, quer expressa de uma maneira positiva quer crítica, ele nega Marx e o próprio título de seu trabaIho – luta de classes – porque a dialética das ideologias estéticas se da dentro de uma mesma classe, a dominante.
A concepção de arte presente aí é dogmática e estética, o que interessa é a obra, e somente ela, e não há uma praxis artística que surja das massas como força revolucionária em oposição à arte da classe dominante. Hadjinicolaou nega em última instância a possibilidade de a arte intervir sobre o real, ela é um mero reflexo da superestrutura. A concepção de homem presente em tal visão supõe uma passividade, acomodada ou crítica, mas sempre uma mera reprodução da ideologia global. Tal pensamento é antidialético e o homem resultante dele rompeu sua verdadeira ligação com a História, que é por essência experimentação e praxis.
Ao separar na teoria a ideologia da obra da ideologia do artista, Hadjinicolaou faz uma história dos objetos e, quando, ao aplicar o seu método ele considera o momento histórico e a vida do artista, ele se contradiz a si mesmo. Teoricamente Hadjinicolaou suprime a subjetividade tanto do artista quanto do expectador, substituindo-as pela ideologia imagética e, assim agindo, pretende suprimir também a estética, já que o belo criado ou percebido não existe como objeto é parte da imagem como ideologia. Porém, parece-nos falha tal posição, por isso devemos ver o problema estético.
3.2 – O que é estética?
Existem tantas definições de estética quantas estéticas existem, e cada definição só é válida dentro do contexto de pensamento de quem define. A palavra estética vêm do grego – “ainsthétiké, ainsthésis, aisthésia” = sensação, percepção – que permitirá sua aplicação à arte, pelo fato de que a apreciação de uma obra se dá pelos sentidos, que recebem da mesma uma sensação. Como para os gregos arte era a expressão do belo, tradicionalmente interpretou-se a sensação estética como prazerosa. Daí Hadjinicolao dizer que se as sensações diante de uma obra variam do prazer ao desprazer segundo a ideologia da imagem e do espectador, não haveria conseqüentemente a sensação estética e o belo e a inexistência do objeto estético esvaziaria a estética como ciência. Entretanto, é falsa a interpretação de que a percepção estética seja obrigatoriamente prazerosa. Tanto é verdade que a palavra grega “anaisthésia“, de onde derivou a palavra portuguesa anestesia, significa sem sensações (de dor). Ora, se o “a” é negativo e “aisthésia” fosse sensação prazerosa, anestesiado equivaleria a sem sensações de prazer, o que não impediria a significação de corn sensações de dor, o que claramente é falso. Daí que a etimologia da palavra estética admite uma arte feia, uma arte que provoque desprazer, náusea, o que seja.
Sendo assim, Hadjinicolaou ao refutar o belo refuta uma determinada estética e não toda a estética. E não vemos sentido em usar uma nova palavra se a original se presta ainda a novos sentidos. A Psicologia não é mais o “estudo da alma” e nem por isto mudou de nome, assim também a estética não necessita mudar de nome apesar de não ser mais o “estudo da beleza”. O behaviorismo criou uma terminologia nova, mas com isto não chegou a criar uma psicologia completamente nova: de nada adianta dar novos nomes aos mesmos bois. Os velhos signos sempre se prestam a novos significados, a própria arte é um exemplo disto.
Para nós a estética tem de ser tomada em dois sentidos: um global e outro particular. No sentido global a estética tem como objeto a percepção, quer seja percebida a natureza, o próprio homem ou os produtos humanos, artísticos ou não, quer percebamos o belo ou o feio, quer sintamos prazer ou asco. No sentido particular a estética tem por objeto a sensação provocada pela arte, quer na origem da criação, quer durante a mesma ou ao final do processo artístico: a sensação do espectador diante da obra. Em outras palavras: a estética em seu sentido particular tem como objeto a obra de arte, já que a arte se dá como um processo perceptivo‑comunicativo.
Como o objeto artístico, apesar de estar, como qualquer produto, fora do homem, por ter sido criado pelo artista (e qualquer homem como produtor de arte é artista) está carregado de subjetividade. Assim também cada homem sentirá a obra que tenha diante de si segundo sua subjetividade, interpretando-a, participando do processo-arte. Não podemos aceitar a negação total da subjetividade que nos propõe Hadjinicolaou, e que em seu pensamento se configura contraditoriamente porque: 1° ele interpreta obras usando dados pessoais do artista; 2° admite diferentes teorias burguesas sobre arte – só determinadas objetivamente? e 3º porque aceita que o artista possa segundo sua “subjetividade”(?) expressar a ideologia global de modo positivo ou crítico. O que podemos aceitar é que a subjetividade do artista foi introjetada de fora, reproduzindo de certa forma a cultura que o envolve e engloba, e a ideologia dominante socialmente. Mas não podemos pensar que estruturas universais tenham significados universais, a subjetividade retoma os grandes signos sociais e os reinterpreta segundo seus padrões individuais de domínio das linguagens culturais e segundo sua própria capacidade de interpretar e manipular os signos do seu contexto. Mesmo que os burgueses sejam como árvores de uma mesma floresta, cada árvore experimenta a floresta, a incorpora ou rejeita, segundo sua realidade individual.
3.3 – O que é a análise de Hadjinicolaou?
A partir das considerações anteriores temos que para Hadjinicolaou a estética é uma pseudo-ciência idealista e burguesa. Mas Hadjinicolaou esquece que, segundo ele mesmo, o que Lukács faz é estética, e todos sabem que Lukács é marxista e, portanto, materialista. E De Paz, Canclini, Janete Wollf, Adorno, Marcuse e outros são também marxistas e fazem de algum modo estética. Canclini, por exemplo, está muito mais próximo do pensamento “marxiano” do que Hadjinicolaou. O próprio Marx retém nos seus textos da juventude alguns elementos idealistas: a idéia de que o homem pode produzir sem fins utilitários, livremente e segundo as leis da beleza; a idéia de que existe uma racionalidade a priori do mundo que constitui as consciências individuais como mero reflexo, o finalismo hegeliano de cunho cristão, etc. E ainda podemos dizer que o que Hadjinicolaou faz também é estética.
Hadjinicolaou propõe uma “análise históricaconcreta” (um fato, uma obra), esquecendo que a análise histórica é generalizante quando vista sob o prisma ideológico das classes sociais. Hadiinicolaou afirma que a Filosofia da História não possui objeto, sendo uma pseudociência, e ao mesmo tempo tenta construir uma Filosofia Materialista da História da Arte. Sua posição afasta-se da ortodoxia marxista, inserindo-se no marxismo estruturalista de AIthusser, que concebe a História como um processo sem sujeito. Ora, substituir o sujeito da História da Arte (o artista) por estruturas econômicas e de poder, numa palavra, por uma ideologia imagética, é cair numa filosofia dogmática e anti-humanista, afastada do próprio Marx. Enfim, o que Hadjinicolaou faz é aplicar o “stalinismo” à arte.
NOTAS:
1 – MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos, apud DE PAZ, Alfredo La critica social del arte. Barcelona, Gili, 1979, p.30.
2 — HADJINICOLAOU, Nicos. História da Arte e Movimentos Sociais. São Paulo, Martins Fontes, 1973, p. 180.
3 — Ibidem, p. 90.
4 — Ibidem, p. 183.
5 — Ibidem, p. 183.
BIBLIOGRAFIA:
1. CANCLINI, Nestor Garcia. A socialização da arte. São Paulo, Cultrix, 1980.
2. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário Etimológico Nova Fronteira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.
3. DE PAZ, Alfredo. La crltica social del arte. Barcelona, Gill, 1979.
4. DUFRENNE, Mikel. O que é estética. Correio do Povo, Porto Alegre, 28 novembro. 1970.
5. HADJINICOLAOU, Nicos. História da Arte e Movimentos Sociais. São Paulo, Martins Fontes, 1973.
(Texto publicado em março de 1984.)