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Anarquia e arte

A palavra “anarquia” não significa etimologicamente desordem e bagunça. É a negação do poder, o desgoverno, no sentido de ausência ou negação da autoridade. Aqui vou usá-la significando “ausência de parâmetros teóricos referenciais”. Quando nenhuma teoria governa, temos um quadro caótico, quase ininteligível, ou melhor, compreensível somente a partir de uma concepção anárquica da arte. Aplicando à arte o enfoque que Paul Feyerabend desenvolveu em relação à ciência, podemos dizer que a arte, como reprodução e recepção, é um fenômeno essencialmente anárquico, porque:

1. toda obra de arte é imprevisível antes de sua conclusão. É impossível determinar até mesmo futuras tendências artísticas, pois a criação transcende o projeto original do artista.

2. A arte transfigura o real e não há regras que decodifiquem todas as alternativas de transfiguração possíveis.

3. Toda obra de arte é única.Não há duas obras absolutamente iguais, mesmo quando lidamos com semelhanças como as de Picasso e Braque no cubismo analítico. Apesar da reprodutibilidade técnica da arte e das reflexões de Walter Benjamin, a obra de arte não perdeu de todo sua aura de obra única. As reproduções são feitas a partir de uma matriz, que por sua vez é única e, mesmo quando a obra em si é uma cópia, como no cinema, sua essência é única, não se reduzindo ao seu suporte material.

3. Não existe o estilo, a não ser como uma abstração pedagógica, classificatória e simplificatória, para não dizer, simplória. No máximo o que chamamos de estilo não passa de uma assinatura pessoal, que não abraça a obra singular em si mesma.

4. A obra de arte resulta de uma práxis que não se reduz ao quadro teórico que tenta explicá-la.

5. Nenhuma teoria estética explica todas as obras da história da arte, o que implica:

– um conflito entre obra e teoria;

– a consciência dos limites da teoria;

– uma história da arte calcada na negação dialética do velho pelo novo, em busca da originalidade estética;

– que tudo é válido, nenhuma regra ou idéia subsiste à busca incessante de novas identidades.

6. Nenhuma teoria estética ou econômica explica, satisfatoriamente, porque um mesma obra pode, em épocas distintas, valer de modo exorbitantemente diferente.

7. Nenhuma teoria estética possui critérios satisfatórios sobre o que é arte ou sobre o que distingue a produção artística do mero artesanato, a obra valiosa da vulgar, a bela do kitsch. O gosto é um produto cultural mutável e a obra de arte é, simultaneamente, uma produção material e espiritual, uma mercadoria e uma projeção psíquica, o resultado de um trabalho mental, o significante e o significado de si própria como signo, o reflexo de uma realidade histórico-social e muito mais.

8. Toda obra possui função social, por mais subjetiva que seja, pois, como lembrou Sartre, a subjetividade é o momento em que o exterior é introjetado, daí ser impossível separar completamente na obra o individual do coletivo.

9. A obra de arte possui um imaginário ideológico que não necessita, obrigatoriamente, coincidir com a ideologia do artista e de seu grupo social. Daí ser impossível inferir de um contexto social o conteúdo imagético da arte ali produzida.

10. A arte se aproxima do mito, pois surge de uma função simbólica que o pensamento humano exerce sobre a realidade e, por isto, oculta a sua racionalidade, sendo,  até  certo  ponto,  irracional  e ininteligível.

11.  Nenhuma corrente artística esgota a  riqueza  das  formas artísticas que se abrigam sob o seu rótulo.

12. A totalidade da produção artística do presente e do passado é mais rica, complexa e multiforme, que o quadro que nos traçam as obras da história da arte e as retrospectivas dos museus.

13. As classificações de linguagem, temas, materiais, estilos, técnicas, épocas, autores e propostas, não passam de simplificações metodológicas, que não ordenam o caos e nem explicam a infinita teia de interações inerente à produção artística.

14. Toda obra supõe outras obras. Como nos apontou Jauss, o artista é, antes de produtor, um espectador e consumidor de arte. E a obra de arte, enquanto obra apreciada e interpretada, não possui nenhuma unidade global no conjunto de sua recepção: existem muitas obras numa só obra, cada cabeça é uma obra.

15.  O desenrolar da história da arte nos demonstra que na criatividade tudo é válido e possível. O avanço pode se dar contra todos os cânones estabelecidos e os valores estéticos consagrados. Qualquer concepção passada de arte pode ser desencadeante de novas concepções e formas.

16.  A proliferação de diferentes propostas estéticas e a multiplicidade diversificada das  formas artísticas é benéfica e preferível à uniformidade.

17. A arte é o que precipuamente possui função estética, apesar das limitações de tal conceito. A função estética é a que faz com que algo exista para ser usufruído pelos sentidos, quer as sensações provocadas sejam agradáveis ou desagradáveis, resultem de beleza ou fealdade, harmonia ou desarmonia, o que não exclui o estímulo intelectual e o desafio do novo.

18. Enfim, a concepção anárquica da arte:

– rejeita todos os dogmas;

– rejeita todos os sistemas teóricos rígidos;

– dá primazia à liberdade individual de criar e apreciar a arte segundo padrões próprios;

– admite a verdade estética da arte como um processo dinâmico, contraditório e múltiplo, composto de racionalidade a paixão, caos e ordem, perenidade e fugacidade, plenitude e vazio. O anarquismo estético se abre aos vanguardismos libertários, contestadores de todos os padrões artísticos e críticos vigentes.

Publicado em 6 de dezembro de 1991.